CORDEL PARAÍBA

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Bem-vindos, peguem carona/Na cadência do cordel,/Cujo dono conhecemos:/Não pertence a coronel./É propriedade do povo:/rico, pobre, velho, novo/deliciam-se deste mel./Rico, pobre, velho, novo/Deliciam-se neste mel.

(Manoel Belisario)



sábado, 25 de julho de 2015

Jarid Arraes em um bate-papo sobre Literatura, Ativismo, e sua nova publicação “As Lendas De Dandara”

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Por

Jarid Arraes mora em São Paulo, mas nasceu em Juazeiro do Norte, na região de Cariri, Ceará. Com apenas 24 anos, é autora de mais de trinta títulos em literatura de cordel. A escritora e jornalista é feminista e bastante engajada — o feminismo, aliás, está presente em toda sua obra, que busca combater o machismo, racismo, homofobia e outras formas de preconceito. Sua atuação política a levou à coluna Questão de Gênero, que assina na Revista Fórum.

Filha e neta de cordelistas, Jarid agora lança seu primeiro livro, As Lendas de Dandara. A obra mistura ficção, história e um pouco de fantasia e tem ilustrações de Aline Valek. São dez contos sobre a guerreira quilombola Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi dos Palmares.

Jarid também escreve poesias — uma delas está no primeiro fanzine do #KDMulheres — e tem se destacado no cenário da literatura marginal e independente com sua criatividade e postura inspiradora.

CONFEITARIA — As Lendas de Dandara é o seu primeiro livro, mas você já tem uma história longa com a literatura através dos cordéis. Como essa história começou pra você?

JARID ARRAES — Com os cordéis, minha história começou quando eu ainda era bem criancinha. Meu pai e meu avô são cordelistas e xilogravadores, meu avô é fundador de uma associação de artesãos no Cariri, então eu cresci nesse contexto, aprendendo desde cedo a valorizar a cultura popular nordestina e lendo muito cordel – mesmo quando eu ainda não entendia os temas que eram abordados por eles. Com o passar do tempo, eu fui nutrindo um amor muito grande pela literatura de cordel, mas eu confesso que eu não botava nenhuma fé no meu talento. Depois de adulta e feminista foi que comecei a sentir vontade de escrever cordel; eu já escrevia textos mais políticos, principalmente falando de questões raciais e de gênero, e senti a necessidade de abordar esses temas na literatura de cordel. Meu pai me encorajou e eu escrevi meu primeiro cordel numa sentada só! Foi o “Dora, A Negra e Feminista”. A partir daí eu desembestei a escrever cordel, sempre trazendo protagonistas mulheres, sempre falando de feminismo, do combate ao racismo e outras formas de discriminação. Me encontrei no cordel engajado.

Com a literatura, como um todo, o amor também é bem antigo. Lembro que quando eu tinha 8 anos, ganhei um prêmio num concurso de redação. Os professores sempre elogiavam o que eu escrevia e eu gostava de me expressar pela escrita, sonhava em ser escritora, mas com o passar do tempo, sofrendo com muita carga de racismo e machismo, além de uma alta dose de discriminação contra nordestinos, eu deixei de acreditar que esse sonho poderia se tornar realidade. É irônico, e infinitamente bonito, que eu tenha me tornado escritora por meio da luta por uma sociedade livre desses preconceitos. Foi expressando a minha revolta contra a discriminação que eu comecei a escrever, que eu me apropriei da tradição da minha família com o cordel e que eu cheguei aqui, nesse lugar, onde estou finalmente lançando o meu primeiro livro.

Quais são suas principais referências/influências na literatura de cordel?

Minha maior influência na literatura de cordel é meu pai, Hamurabi Batista. Porque ele sempre escreveu cordel engajado, tratando de temas espinhosos, “polêmicos” e políticos, e sempre de uma forma libertária, sempre rompendo paradigmas e pagando um alto preço por ter essa coragem. Juntando isso com a educação feminista que minha mãe me deu, eu aprendi muita coisa boa em termos de literatura e de expressão das minhas ideias também.

O seu processo criativo para escrever cordéis, poesias e os contos do livro foram/são muito diferentes?

Muito diferentes, nossa! Com o cordel, eu me expresso de forma muito crua, eu geralmente escrevo quando estou irritada e precisa colocar pra fora a minha indignação. O cordel me dá esse espaço totalmente livre e cru para usar as palavras que eu quero e moldá-las de acordo com meus sentimentos e intenções, sem me preocupar com norma culta, com regrinhas. No cordel, é até melhor quando eu uso expressões bem caririenses, quando mexo numa palavra pra que ela fique “errada”, mas permita uma melodia do cordel mais fluida. Já com o livro, eu não pude terminar tudo numa sentada só. Eu tive que reler, revisar, editar e depois dar um tempo para reler e revisar de novo. Eu tive que contar uma história em muito mais páginas e palavras do que nas 28 estrofes que geralmente uso no cordel. Além disso, eu tive que entrar em contato com questões íntimas minhas e que minha personagem trouxe para a superfície; eu tive que trabalhar isso tudo com muita atenção e dedicação, pra que minha personagem não fosse prejudicada. No fim, fiquei muito orgulhosa do trabalho que eu desenvolvi. Mas com certeza a experiência de escrever um cordel e a experiência de escrever um livro são bem diferentes. Assim como é diferente escrever um texto pra Revista Fórum ou uma matéria jornalística — o mais gratificante é que eu gosto muito de jogar com esses papéis e linguagens diferentes. Torna tudo mais intenso. 

Você optou pelo caminho da autopublicação, começando com o e-book do livro e agora partindo também para a versão física. Foi uma escolha para ter mais autonomia em relação ao processo/resultado ou você antes havia tentado o caminho convencional, mas não se sentiu acolhida pelo mercado editorial?

Eu quis seguir independente porque precisava de total autonomia e liberdade para meu primeiro livro. Sabe, eu venho do cordel e no cordel eu faço tudo sozinha, eu escrevo, eu monto, eu distribuo. E uma personagem tão incrível como Dandara merecia uma voz verdadeira, algo que nascesse e saísse pelo mundo da forma mais genuína possível. E pra falar de algo tão pesado como a escravidão no Brasil, eu não queria ninguém bulindo em nada e nem tentando transformar Dandara num objeto enquadrado e reduzido. É um desafio enorme a autopublicação, principalmente porque não tenho dinheiro mesmo, mas me esforcei muito, abri mão de várias coisas e fiz de tudo para concretizar esse objetivo.

O livro foi ilustrado pela Aline Valek, escritora e ilustradora feminista. Como foi o processo? Vocês escolheram juntas quais trechos seriam ilustrados?

Nossa, a Aline é simplesmente maravilhosa! A gente se conheceu por volta de 2012, eu acho, no meio do ativismo feminista. A sensação que eu tenho é de que nem sei como a conheci, de tão natural que foi nossa aproximação. Mas me identifiquei muito com os posicionamentos políticos que ela tinha, fomos nos falando, fui conhecendo mais o trabalho dela e observei que em suas ilustrações existia uma real diversidade de corpos e características físicas. Gostei muito da forma como a Aline desenhava mulheres negras. Então, quando tive a ideia do livro sobre Dandara, imediatamente pensei nela. A Aline veio aqui em casa, em São Paulo, eu falei pra ela sobre o livro, disse que já tinha algumas cenas que gostaria de ilustrar em mente e juntas pensamos na aparência de Dandara, cada detalhe, como o tom de pele escuro, o cabelo sempre visível, o corpo não-magro. Depois eu mandei pra ela as cenas de cada capítulo que eu gostaria que ela desenhasse e ela me mandou várias versões e ideias para cada uma delas. Foi incrível, a gente se deu muito bem, acho que trabalhamos maravilhosamente juntas e depois de tudo o que ela fez para me ajudar, minha admiração por ela está mais de oito mil vezes maior.

E como foi participar de todas as etapas da publicação — edição, revisão, diagramação?

Foi muito enriquecedor, principalmente porque tive a Aline Valek como mestra e também a ajuda do meu namorado com a revisão. A Aline me auxiliou muito, teve muita paciência e me orientou de diversas formas. Sou muito grata porque tive esse apoio incrível. Foi uma experiência toda cheia de dramas e depois de alegrias. Fiquei satisfeita com o resultado, mas prefiro dizer que não entendo de edição, nem de revisão, nem de nada além de escrever o que eu preciso escrever. No entanto, talvez eu faça de novo.

Na sua opinião, quais outras autoras negras e contemporâneas merecem mais espaço no mercado editorial e na cabeceira dos leitores?

Eu acho que há muitas jovens negras super talentosas e que escrevem bem, mas que muitas vezes não conseguem compartilhar suas obras porque há uma carga terrível de misoginia e racismo enfiando insegurança em suas mentes. Muitas meninas me enviam poesias e textos com o maior medo do mundo e falam que nunca mostraram nada para ninguém. Acho isso realmente terrível, um reflexo perverso de como a nossa sociedade exclui e ataca mulheres negras. Por isso, citar dois ou três nomes é pouquíssimo. Cito porque é preciso, mas também precisamos mudar toda a estrutura. Ontem ganhei o livro Caravana, da Carina Castro, e devorei tudo na mesma noite. Quanto talento! Também sempre cito a Ana Maria Gonçalves, autora de um dos livros que mais mexeram comigo, o Um Defeito de Cor. E uma companheira de militância, a Karla AgreSilva (olha o sobrenome que a mulher usa!), que escreve para remexer na ferida, emociona, faz qualquer pessoa se sentir incomodada, mas que ainda não foi publicada.

Você participou do primeiro fanzine do movimento #KDmulheres, que luta por maior representatividade das mulheres na literatura. Como vê o mercado editorial brasileiro hoje em relação às mulheres de maneira geral?

O mercado editorial brasileiro, assim como os leitores brasileiros e toda a sociedade brasileira, está contaminado por machismo, por racismo e por outras questões altamente problemáticas e excludentes. Não só porque barra escritoras extremamente talentosas, mas até mesmo quando elas são publicadas o negócio é de chorar. Vi capa de livro de feminista com mulher toda no padrão, magra e loira, algo totalmente incompatível com o assunto do livro e com a própria autora, mas que foi feita daquela forma para chamar atenção nas prateleiras às custas da objetificação e padronização feminina. E isso porque ela teve sorte de ser publicada, né? Se não fossem as editoras pequenas e voltadas para obras especificamente de pessoas negras, por exemplo, não conseguiríamos achar nem sequer um livro infantil com uma personagem negra e de cabelos crespos. Pelo contrário, livro que ensina que cabelo liso é mais bonito tem aos montes! As editoras se interessam por aquilo que está no padrão e, por isso, tem mais chances de vender. Mas, nossa, como estão enganados! Desde que anunciei o meu livro, tenho recebido uma chuva de e-mails e mensagens de pessoas interessadas já querendo comprar, por isso que decidi lançar também a versão física.

Durante a última Feira Literária Internacional de Paraty, a Flip, as mulheres — as poucos mulheres convidadas — foram as que mais venderam livros e que mais fizeram que o evento repercutisse nas redes. Viva Karina Buhr, viva #KDmulheres e Aline Valek. A gente prova que essa lógica machista e racista está equivocada, mas o mercado editorial brasileiro terá coragem de sair de suas caixinhas fedidas de tão ultrapassadas? Vamos jogar esse disquete fora, botem no museu e abracem a pluralidade, a diversidade brasileira. 

As Lendas de Dandara será lançado oficialmente no dia 23 de julho na Casa de Lua, em São Paulo. “Vai ter o evento com roda de conversa comigo e a Aline Valek, exposição das ilustrações, bebidinhas grátis, sorteio de cordéis e outras coisas legais”, convida Jarid.
Mais informações sobre o livro e o lançamento aqui.

Imagem: fotografia de Carolina de Marchi

Texto Por: Fabiane Secches para Confeitaria.
A Confeitaria é uma publicação independente sobre comportamento, literatura, cinema, design, artes e cultura, formada por um coletivo de autores de lugares, formações e interesses diversos, mas com um denominador em comum: a vontade de contar histórias e a generosidade em dividi-las com a gente.

Fonte: mode.fica

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